segunda-feira, 27 de julho de 2009

Jean-Joseph Rabearivelo: o fogo novo-ancestral.

Por Antônio Moura



“Se quisermos, entre tantas outras, uma prova, é suficiente lembrar-se o début da literatura negra na França e a situação escandalosamente hostil dirigida há trinta anos a um René Maran ou a um Rabearivelo ... Somente o fato de sua existência já se constituía um escândalo.”
Assim, em seu texto La mission de l´écrivain, o poeta antilhano, natural da Martinica, Aimé Césaire, referia-se a situação dos grandes artistas pertencentes ao mundo negro colonizado. E, até hoje, acho que não podemos apontar outra razão para que um poeta notável como Jean-Joseph Rabearivelo seja ainda tão desconhecido, a não ser pela a cortina de obscurantismo que colonialismo cultural impõe aos povos tiranizados.
Nascido Jean-Casimir Rabe – seu nome de batismo – , em Tanarivo, Madagascar, no ano de 1901 (ou 1903, há controvérsias), filho natural de uma jovem protestante de sobrenome Rabozivelo e descendente de uma casta real arruinada pela colonização, falecido – suicidado pela sociedade –, em 1937, trata-se, do ponto de vista geo-político, de um autor descentralizado, de fora do eixo europeu dominante da literatura, negro, de um país periférico. Madagascar, na época do nascimento de Jean-Joseph Rabearivelo, nome artístico posteriormente adotado, é uma colônia francesa e as classes dominantes, arruinadas, subsistem em convivência com os poderes estrangeiros, que já dominavam, durante todo o século anterior, os valores tradicionais da grande Ilha Vermelha.
A primeira parte de sua obra, está situada mais precisamente de 1924 a 1930, com La coupe de cendres (1924), Silves (1927), Volumes (1928) e L´interference, uma novela sobre a sociedade colonial, publicada postumamente. Ainda estilisticamente concebidos sob a influência da escola parnasiana, mas onde já se pode rastrear ao menos duas das maiores preocupações essenciais de Rabearivelo: o culto dos antepassados e a exaltação da legendária Larivo. Obras que, na interpretação de H. Mariol, traduzem a luta interior do homem de letras ocidental em que Rabearivelo tinha se tornado e do indonésio que mantinha preservada a herança de seus ancestrais. 1924 é também o ano em que começa a escrever os Calepins Bleus (Cadernos Azuis), célebre diário escrito até mesmo o dia da sua morte. Um pouco mais tarde, o aparecimento de Presque-Songes (1935) e Traduit de la nuit (1936) viriam celebrar um salto.
Não há dúvida de que a arte de Jean-Joseph está intimamente ligada em termos
de tradição à literatura francesa – como a sua aproximação à vidência rimbaudiana, par le dérèglement de tous les sens – e muito dificilmente poderia ter sido diferente, tendo o autor nascido e vivido em Madagascar, quando esta era ainda uma possessão francesa, e por sua vivência e suas leituras decorrentes desta condição, onde podemos encontrar escritores diversos como Verlaine, Rimbaud, Laforgue e, especialmente, Valery, com quem, mais tarde, viria a corresponder-se, além de outros de variadas nacionalidades como Rilke, Withman e Tagore. Entre os elementos posteriores devemos destacar a aparição do surrealismo, do qual o autor tinha conhecimento, incorporando em sua própria escritura a experiência então ruptora das idéias do grupo de André Breton.
Mas há também algo nesta poesia que escapa à este galicismo e que me parece ser um estado de mentalidade animista, dotando de alma o inumano e o inanimado que o cerca. E o que o cerca? Larivo: A terra de seus ancestrais.
Aqui devemos entrar um pouco em seu mundo para ver como este ecoa em sua palavra. Como quase todos os povos que ainda mantém seu raizame “tribal”, o malgache professa uma religião cujo pilar é o culto dos antepassados. Em Madagascar, a relação entre vivos e mortos é íntima e quotidiana. Ali, não se diz que alguém morre, mas, simplesmente, dá as costas à vida, passa a outros estados. A morte não é um estado temível senão de igualdade, em que se abolem as diferenças de idade e de classe, distinguindo-se unicamente pelo sexo. Em alegoria desta mentalidade encontramos a famadihana, uma cerimônia de exumação que tem lugar entre os funerais do morto e no período em que a carne decomposta se desprende do esqueleto. Durante este lapso, o morto não é mais do que um ancestral em estado latente, cuja única prerrogativa é aparecer em sonhos para pedir que os familiares levem a cabo o quanto antes o seu famadhiana. Esta grande festa familiar em que se sacrifica um zebú, consiste, fundamentalmente, em revestir ao morto com uma lambamena, a “lamba roja” do poema Lambe. Só a partir deste instante os familiares contam com a proteção de seu antepassado, sempre e quando, claro está, devolvam o corpo deste à terra, do contrário, o espírito do morto se dedicará a fustigar-lhes com um sem fim de calamidades.
Após o famadhiana, o morto, ascendido já à razana, pode escolher seu caminho: ajudar os seus a conseguir maior prosperiedade e, ouvindo-os, protegê-los do mal olhado e de feitiçarias, ou permanecer inativo e surdo às suas súplicas. Mas, em tal caso, sobre ele paira a ameaça de reencarnação, entendida como um castigo para ele e, ao mesmo tempo, um escândalo para sua família.
Por conta desta intensa relação com o invisível, o tema do culto aos antepassados também está presente desde os primeiros momentos de sua obra, como em La Coupe de cendres, até suas obras de ruptura, mais notadamente em Presque-Songes, tanto de forma mais metalinguística como em Le poème, “Palavras para o canto, dizes, palavras para o canto,/ ó língua de meus mortos,/ palavras para o canto, para designar/ as idéias que o espírito desde tempos remotos concebeu (…)”, quanto de forma mais abertamente temática, como nos poemas Le bon vieux, Lambe e Thrènes.
Em Traduit de la nuit este culto ancestral encontra-se de forma mais velada, através de uma poética que inclui elementos e figurações recorrentes que nos remetem à nossa ancestralidade universal, como a própria noite, o pássaro, a estrela. Elementos que vão e voltam ao longo do livro e que também formam uma poética, um dialogo com o próprio ato criador. Tudo isto através de um dicção muito peculiar, em que devemos destacar o advento do verso livre e, em particular, o verso livre de Jean-Joseph, que, segundo seus críticos, é consequência de suas leituras vanguardistas,
Tradição, diálogo com os vanguardas e voz própria. Esta alquimia de substâncias, este caldeirão, fez com que sua obra sofresse uma ruptura e que seus livros mais importantes, Presque-songes e Traduit de la nuit, posteriores à sua primeira fase, tivessem, por este motivo, segundo seus historiadores, causado assombro.
Mas, por outro lado – o lado prosaico da vida – , para Jean-Joseph Rabearivelo, 1937, o seu último ano de vida na terra, é uma sucessão de desilusões e amarguras: sua saúde declina a cada dia – processo em que o uso do ópio parece ter tido um papel relevante; droga a que recorreu mais como um bálsamo às sua dores de corpo e de alma do que como fonte de inspiração, ainda que esta fizesse parte de um suposto projeto poético e espiritual próximo ao da vidência planejada por Rimbaud – , assim como fica também cada vez mais difícil conciliar-se com a vida quotidiana no ambiente castrador da colônia; o governo nega-lhe, às vésperas, uma viagem prevista à Exposição Universal em Paris, onde um bailarino, Serge Lifar, iria interpretar sua cantata Imaitsoalana; as dívidas acumulam-se e os credores o levam aos tribunais, onde é declarado culpado.
Diante deste quadro, tenta, num recurso desesperado, acrescentar mais dinheiro aos seus rendimentos solicitando um posto de funcionário público, mas a administração o recusa, por não possuir nenhum título oficial. Dois dias após a esta tentativa frustrada, no dia 22 de julho, o poeta escreve a última página do seu diário e suicida-se, ingerindo dez gramas de cianureto.

Antônio Moura


Antônio Moura nasceu em Belém (PA), em 1963. Poeta e tradutor, publicou, entre outros títulos, os livros de poesia Dez (1996), Hong Kong & Outros Poemas (1999) e Rio Silêncio (2004), e os livros tradução: Quase-sonhos (tradução de Presque-songes, de Jean Joseph Rabearivelo – Lumme Editor - São Paulo, 2004), Contra o segredo profissional (tradução de Contra el secreto Professional, de César Vallejo - Lumme Editora, São Paulo, 2005). Participou das antologias Na virada do século (Brasil), Construções Portuárias (Portugal), Serta (Espanha), New American Writing (EUA) e Anthology of World Poetry of the 20th Century (EUA). Viveu em São Paulo e Portugal, atualmente reside em Belém do Pará.

4 Comentários:

Adinalzir disse...

Taí, gostei!

Eu sou eu. Tu és tu. Nós somos nós. Rsss...
Parabéns pelo blog!

Abraços!:-)

Adinalzir disse...

Olá, Argentino!

Olha eu aqui de novo. Vamos postar? Rsss...

Abraços, :-)

Argentino Neto disse...

Prof. Adnalzir. É que me dedico muito ao outro blog ideias em Arte-Educação. Mas, vamos trabalhar.

Argentino Neto disse...

estamos voltando agora meu povo

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